17 de maio de 2020

Nosso ponto de vista sobre o rodízio e a remoção/apreensão de veículos durante a quarentena oficial (lockdown)


Arte: Cláudio Eufrausino 
Com auxílio dos programas Canva e Filmora


Recentemente, publicamos uma reportagem no blog dO Analista de Trânsito sobre a implantação do rodízio de veículos como parte das medidas da quarentena oficial (lockdown) decretada pelo Governo do Estado de Pernambuco para cinco municípios da Região Metropolitana de Recife, no período de 16 a 31 de maio de 2020.

O assunto tem causado polêmica e inclusive gerou comentários pouco amigáveis com relação à reportagem que fizemos.

A primeira coisa a ser dita é: ofensas não me afetam. O que me afeta é uma boa argumentação.

Segunda coisa: ao noticiarmos um fato, no caso as regras da quarentena e, de forma específica, as regras que direta ou indiretamente afetam o trânsito, não estamos, necessariamente, emitindo juízo de valor.

Terceira coisa: particularmente não acho que o rodízio de veículos seja uma medida com efeito garantido, tendo em vista que, nos municípios em que ela foi adotada, observou-se que os ônibus ficaram mais cheios.

Deixando claro esses três pontos, passemos para a análise da legalidade do rodízio. Deixando claro que nosso posicionamento respeita completamente pareceres contrários, principalmente porque se trata de um tema bastante complexo do ponto de vista jurídico.

E antes que alguém questione com que direito faço uma análise jurídica, respondo:

Em sendo a publicidade das leis uma obrigação legal e entendendo que o princípio da publicidade pressupõe o direito de qualquer cidadão de conhecer as leis e, portanto, refletir sobre elas, enquanto cidadão tenho inequívoco direito de refletir sobre e analisar as leis, até porque o cidadão não pode alegar o desconhecimento das leis como pretexto para descumpri-las.

Mas, vamos direto ao ponto. Independentemente de não concordar com o rodízio, não posso considerá-lo ilegal pelos seguintes motivos:

1. Juridicamente, o Decreto é um ato normativo subordinado à Constituição Federal e às leis federais.

2. O Decreto Estadual 49.017, de 11 de maio de 2020, que institui o rodízio durante a quarentena toma por base os artigos 23, 24 e 198 da Constituição Federal, que dizem respeito à execução de medidas relativas à promoção e à proteção da saúde pública em caráter preventivo e assistencial.

Em particular, o artigo 198 chama atenção ao mencionar que as ações de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada com prioridade para as atividades preventivas e tendo como diretriz a participação da comunidade.

Ora, o artigo 10º do Decreto Estadual, em consonância com o artigo 198 da Constituição prevê que a fiscalização durante a quarentena será realizada por uma articulação entre instâncias estaduais e municipais, mais especificamente a Secretaria de Defesa Social (mais especificamente a Polícia Militar), o Departamento Estadual de Trânsito - Detran-PE, e os órgãos municipais de trânsito.
Está respeitada a rede regionalizada e hierarquizada, tendo em vista que existe a presença de órgãos com poder para aplicar punições da esfera sanitária, da esfera policial (strictu sensu) e da esfera de trânsito.

Mas, Clécio, o artigo 22 da Constituição não menciona que "compete privativamente à União legislar sobre trânsito e transporte"?

A resposta é Sim. Mas, competência privativa não significa competência exclusiva. As competências exclusivas da União estão previstas no artigo 21 da Constituição.

Em tese, estados e municípios podem legislar sobre trânsito e transporte se o assunto for de interesse local e a norma não se chocar com a lei federal.

Além disso, o artigo 24 da Constituição, que fala sobre as competências que podem ser exercidas tanto pela União quanto pelos estados, traz em seu parágrafo 2º que a competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.

3. O Decreto Estadual cumpre o papel de um decreto, que é o de tratar de detalhes da lei, de pontos específicos, criando os meios necessários para fiel execução da lei, mais especificamente da Lei Federal 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.

4. A Lei Federal 13.979, no seu artigo 2º, inciso II, prevê a aplicação da quarentena, entendida também como restrição de meios de transporte de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus.

Em seguindo este raciocínio, o rodízio de veículos é uma expressão concreta da restrição de meios de transporte.

5. Com base no já mencionado texto constitucional, os estados e os municípios podem decretar quarentena.

Você vai me perguntar: Mas, Clécio, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) não prevê que compete aos municípios planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos?

É verdade. E aí é que mora o ponto nevrálgico da questão.

O que desembaraça esse nó é o parágrafo 5º do artigo 1º do CTB, segundo o qual os órgãos e entidades de trânsito pertencentes ao Sistema Nacional de Trânsito darão prioridade em suas ações à defesa da vida, nela incluída a preservação da saúde.

Ora, temos uma dupla priorização do critério de saúde: pelo CTB e pela Lei Federal 13.979. Nesse sentido, as leis se complementam e o Decreto Estadual se pauta nesta complementação recíproca das mencionadas leis federais.

E com relação à remoção de veículos?

Também tem sido alvo de polêmica o Projeto de Lei 1.140 que prevê a "apreensão e remoção veicular nas vias públicas, sempre que caracterizada infração aos atos normativos estaduais que estabeleçam restrições à circulação de veículos no Estado de Pernambuco, em decorrência da pandemia da COVID-19".

Percebe-se o uso incorreto do termo apreensão, tendo em vista que este termo se refere a uma penalidade que deixou de ser aplicada. O que existe é a medida administrativa de remoção do veículo que só pode ser aplicada para infrações previstas no Código de Trânsito Brasileiro (CTB), o que não é o caso do descumprimento do rodízio veicular.

Nesse caso, o Governo do Estado claramente forçou a barra ao tentar fazer com que a lei estadual se sobreponha à lei federal decretando a possibilidade de remoção sempre que for descumprida determinação do Decreto Estadual 49.017.

Nada melhor do que o debate. Após conversar com um especialista da área de trânsito, fui informado que a medida de apreensão de veículos carecia de lei  que a regesse. Diante desse "vácuo" jurídico. o Projeto de Lei 1140/2020 pôde achar lugar. 

De qualquer modo, a penalidade de apreensão permanece prevista no CTB, como atesta o artigo 210, segundo o qual é infração Transpor, sem autorização, bloqueio viário policial, infração esta de natureza gravíssima que, além de multa, prevê a suspensão do direito de dirigir e  a"apreensão do veículo".

Além disso, é possível "encaixar" condutas no CTB tendo em vista o princípio maior previsto no artigo 1º do CTB, segundo o qual os órgãos e entidades de trânsito pertencentes ao Sistema Nacional de Trânsito darão prioridade em suas ações à defesa da vida, nela incluída a preservação da saúde.

A apreensão, prevista do no Projeto de Lei 1140 pode ser também aplicada como penalidade sanitária, sendo um desdobramento natural da medida de restrição à circulação de veículos aplicável numa situação de quarentena.


Ficamos sem saber se o CTB utiliza o termo apreensão no sentido de penalidade ou se está simplesmente se referindo à medida administrativa de remoção do veículo para o depósito.
O artigo 210 do CTB continua utilizando o termo apreensão, mesmo após a publicação da Lei 13.281/2016, que supostamente teria colocado o termo "apreensão" em desuso.



Resumindo:

Com base no que foi exposto, consideramos o rodízio uma medida sem eficácia comprovada no combate à aglomeração de pessoas. Porém, não se trata de medida ilegal.

Consideramos ilegal o Projeto de Lei 1140/2020, que determina a possibilidade de remoção do veículo em qualquer caso de descumprimento das normas da quarentena. Porém, é possível aplicar a medida administrativa de remoção do veículo durante a quarentena, nos casos em que o condutor tente transpor bloqueio viário ou policial, como está previsto no CTB.

A  apreensão de veículos prevista no Projeto de Lei 1140/2020 pode ser aplicada como desdobramento de medida sanitária e também como penalidade no caso de cometimento da infração prevista no artigo 210 do CTB, segundo o qual é infração Transpor, sem autorização, bloqueio viário policial, infração esta de natureza gravíssima que, além de multa, prevê a suspensão do direito de dirigir e  a "apreensão do veículo".

O assunto é complexo e esta análise não pretende esgotá-lo. Que o debate prossiga.

Dica dO Analista: quem gosta de insulto e palavrões deve economizar seu "latim vulgar" nos comentários de postagens.

O melhor é acionar órgãos como o Ministério Público, a Assembleia Legislativa e a Ouvidoria do Governo do Estado e, com argumentos, apontar o que se julga falhas nas medidas relativas à quarentena. A melhor forma de pressionar o Governo é por meio de crítica baseada em argumentos e por meio das urnas.

Reafirmamos nosso objetivo em informar sem tomar partido seja de qual lado for. Esse é o compromisso do canal dO Analista de Trânsito.

Atualizado em 18-05-2020 às 13h20

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