20 de março de 2021

Por que os ônibus urbanos não funcionam como os uber?: por que o tabu da aglomeração dos ônibus urbanos não consegue ser superado?


                                                       Imagem: Yan Marcelo/@yanzitx


Desde criança, ouço o ditado popular "Quem pode pode. Quem não pode se sacode". 

Dessa essa lógica perversa, podem derivar frases que estamos "acostumados" a ouvir como:

  • Quem pode ter carro, tem. Quem não pode, anda de táxi.
  • Quem pode andar de táxi, anda. Quem não pode anda de ônibus
  • Quem pode andar de ônibus, anda. Quem não pode fique em casa e morra de fome.

A sorte é que, logo cedo, percebi o quanto ditados populares podem condensar num pequeno espaço grande quantidade de mentira ou de verdade irrefletida.

Sorte também que surgiram os serviços de transporte por aplicativo, como Uber e 99,  pra escancarar a podridão contida no referido ditado que, de popular nada tem, porque é elitista todo.

Mesmo que seja de forma lenta e gradativa, a pandemia, como toda tragédia, está expondo contradições.

Não ia ser diferente no caso do transporte de passageiros. 

A principal contradição a que me refiro pode ser expressa por meio das seguintes perguntas:

  • Como se manter socialmente isolado quando se tem de andar de ônibus, particularmente em grandes capitais como Recife?
  • Por que o uber funciona e os ônibus não funcionam?
  • Por que as pessoas não optam por andar de uber ao invés de ônibus?

Primeiro, é preciso dizer que esse tipo de questões precisam de contextos tristes para aflorar.

Mas, quando esse tipo de questão surge mostra que a noção de "falta de alternativa" é uma construção social e não uma sentença divina autenticada com o selo do destino no cartório do "É assim mesmo".

O trabalhador comum, que utiliza o vale-transporte eletrônico, como é o caso do VEM, em Recife, não tem opção. Ele não tem como utilizar o crédito do VEM pra pagar um uber. Se isso fosse possível, certamente grupos de pessoas se organizariam pra rachar o valor do uber e escapar da sina de viajar como sardinha, largados e vestidos, a bordo de ônibus cercados de predadores como assaltantes e vírus.

As condições ruins do asfalto, as grandes distâncias e engarrafamentos são os mesmos. Mas, é como se existissem Recifes diferentes: um pra o ônibus e outro pra o uber

O uber consegue chegar no horário marcado ou com atrasos estatisticamente desprezíveis. Os ônibus não conseguem. Não por culpa dos motoristas, feitos de bodes expiatórios. O que não há é ônibus o suficiente. E não há ônibus o suficiente porque é necessário que o lucro seja exorbitante o suficiente para os empresários do setor de ônibus.

Se eu estiver errado, me corrijam. Mas, o meu erro se diluirá no fato de que, desde que me entendo por gente, nunca vi o setor de ônibus de transporte urbano de passageiros perder quando colocado em questão.

Pelo menos aqui em Recife, eles sempre conseguem aumentar a passagem e diminuir a qualidade do serviço.

Eles deixam o passageiro se sentir como cinderelas obrigadas a viajar a bordo de abóboras superlotadas, acreditando que merecem passar por isso porque lhes resta sempre chegar atrasados porque eles devem se sentir "atrasos de vida" ambulantes.

Os ônibus são lotados não porque não pode haver mais ônibus, mas sim porque simplesmente não há mais ônibus

O descaso com o passageiro de ônibus indiretamente se reflete no descaso para com o incentivo a alternativas de transporte. 

Não sei se você se lembra, mas eu não consigo esquecer como a população recifense foi instigada a sonhar com o transporte coletivo fluvial e viu esse sonho ir por água a baixo mais de uma vez, restando-lhe contemplar como  as placas das obras de desassoreamento do rio Capibaribe eram traduzidas em projetos "pra inglês ver".

É uma piada pré-paga, como é o bilhete eletrônico do VEM, a ideia de que não se pode impedir a aglomeração nos ônibus. É uma piada macabra a afirmação de que os ônibus lotados não favorecem a propagação do Coronavírus.

  • Os ônibus podem chegar na hora como os uber
  • Os ônibus podem alocar as pessoas de forma digna, sem superlotação
  • Os ônibus podem ter conforto

E, mesmo assim, os empresários podem lucrar, mas seria um lucro derivado da adesão de consumidores a um serviço de qualidade e não, como é atualmente, um lucro fundado na criação artificial da falta de alternativa

Eu desafio os gestores públicos. Liberem o VEM para que ele possa ser utilizado pelos trabalhadores em veículos de transporte por aplicativo. Façam isso e vamos ver se a concorrência não estimulará as companhias de ônibus a deixar de seguir a "lógica" maldita dos primórdios do capitalismo, baseada no lucro máximo e na dignidade humana mínima.

Não preciso nem dizer que as empresas de ônibus são burras e mequetrefes porque há muitos séculos já foi comprovado que o lucro "máximo" associado à oferta de serviço porco e rabujo não é máximo coisa nenhuma: longe disso. O lucro se eleva exponencialmente quando associado a patamares de dignidade humana mais elevados. 

A lógica do bem-estar social é capitalista. A lógica do mal-estar social, adotada no Brasil, é uma caricatura fraturada do Feudalismo. E ainda há empresário dessa área de transporte urbano de ônibus que se julga defensor do capitalismo: façam-me rir, senhores.

A "lógica" do bilhete eletrônico do VEM e do atual formato do transporte de passageiros nos ônibus urbanos, particularmente em Recife, é uma versão dos grilhões da escravidão que, mesmo tingidos de invisibilidade, não perdem a capacidade de aprisionar o ferido e  humilhado fundamento da dignidade humana




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